Na 6ª jornada do Campeonato Nacional de Escrita Criativa foi-nos proposto o seguinte desafio: "Recordar e escrever sobre uma das suas mudanças de casa."
A Claudiamar teve esta abordagem interessantíssima.
Eu saí-me com isto:
O meu pai estava na tropa quando disse à minha mãe que casariam assim que
saísse dali. Disse, não pediu. Não tinham casa e ela não trabalhava, mas
naquela altura e na minha terra era esse o curso normal das coisas: eles já
namoravam (à janela) há demasiado tempo e ele queria despachar o assunto. Ela,
submissa, assentiu. Sempre deixou que fosse ele a decidir tudo.
O meu pai ainda deu metade do último ordenado que recebeu antes de casar
aos meus avós e levou de dote um cobertor e uma imagem da Sagrada Família.
Tinha conseguido, no último ano, amealhar o suficiente para comprar um
frigorífico e um fogão. Já a minha mãe, um bocadinho mais remediada, levou a
mobília do quarto de cama e os pais pagaram-lhe a boda.
Receberam como presentes de casamento licoreiras e bomboneiras, copos com
as personagens da novela das nove, lençóis e naperons. E foram viver para casa
dos meus avós paternos, onde tinham um quarto, o respectivo espaço na cozinha e
acesso à casa de banho e às outras divisões comuns. Nos outros quartos estavam
os meus avós, os meus tios e os seus dois filhos e, enfiada no sótão, a minha
tia mais nova, ainda adolescente.
Quando a vida o permitiu, os meus pais começaram a construir uma casa. Os
trabalhos decorriam em função do dinheiro disponível, ou seja, lentamente.
Recordo-me de ouvir a minha mãe referir-se àquelas paredes como "a casa
nova" e eu experimentava, então, um sentimento bom. Seríamos só nós. Mas
olhava para ela e reconhecia-lhe no rosto um semblante pesado e triste.
Da mudança em si, tenho apenas ténues memórias. Recordo um camião em frente
à casa dos meus avós e revejo o meu pai e várias outras pessoas sem rosto a
atirarem tudo o que era nosso lá para dentro. O meu berço, as minhas bonecas,
as nossas roupas atiradas sem qualquer tipo de ordem ou arrumação. E a minha
mãe a chorar. O meu pai tinha bebido e decidido que aquele era o dia.
A entrada na "casa nova" não me traz um sorriso aos lábios.
Atormentam-me a confusão que ainda visualizo, a embriaguez do meu pai e a mágoa
da minha mãe. Naquele dia houve mais do que uma mudança: a realidade a que
assisti destroçou o coração e abalou o mundo de uma menina que tinha no pai o
seu herói.
Sem comentários:
Enviar um comentário