Eu não gosto de poesia.
E grandes "guerras" tive com a minha professora de Português do Secundário por causa disso. Eu era uma adolescente rebelde, com a mania que sabia tudo. Não tinha tento na língua e dizia tudo o que pensava, sem fazer qualquer tipo de triagem. Ela, obstinada, insistia em fazer-me ver coisas que eu não queria. Aturou-me durante 3 anos e chegámos a discutir a forma dos átomos (!).
Começou com Cesário Verde e só arrancou de mim críticas. Uma palhaçada, aqueles textos! Punha as mãos à cabeça e dizia que em não sei quantas décadas a leccionar, eu era a única aluna que não tinha apreciado Cesário Verde; que os alunos gostavam sempre por ser dos tópicos mais fáceis... Nunca me convenceu. Mantive a minha teimosia até ao fim. Até hoje.
Bradava aos céus quando, nos testes, as minhas interpretações dos sonetos de Antero nada tinham a ver com as dela, nem com as grelhas de correcção que havia preparado. Gritava comigo e dizia-me que eu não podia seguir outro caminho que não a advocacia porque se uma coisa era vermelha e eu achava que era amarela, conseguia convencer as pessoas de que era mesmo amarela. Berrava porque não via Antero como eu, mas dava-me a nota máxima porque sentia-se, embora contrariada, obrigada a reconhecer que era uma interpretação válida. Eu convencia-a e ela não gostava disso.
Alvitrou uma vez que, quando chegássemos a Pessoa, aí é que ia ser o cabo dos trabalhos: eu não ia gostar, ia criticar, ia desestabilizar a turma. Enganou-se. A única poesia que consigo ler, para além do meu conterrâneo Antero de Quental (cuja obra filosófica também estudei com afinco), é justamente a de Fernando Pessoa. Ortónimo ou heterónimos.
Em Antero, gosto particularmente dos títulos em Latim (aluna de Latim apaixonada pela Roma antiga...) e da loucura evidente. A Pessoa, não posso deixar de reconhecer a habilidade de, por entre palavras, mostrar e, ao mesmo tempo, esconder outro tipo de loucura. Mas ela está lá, latente.
É preciso um louco para reconhecer outro. Louca me assumo.
Continuo a não gostar de poesia. Sou mulher de prosas. De contos e romances, de histórias e aventuras. Não gosto de sentimentos.
Continuo a não gostar de poesia. Sou mulher de prosas. De contos e romances, de histórias e aventuras. Não gosto de sentimentos.
Ficam dois que me tocam. Mas só estes dois. Porque repito: eu gosto mesmo é de prosa.
(Eu e a minha professora de Português gostávamos verdadeira e sinceramente uma da outra. Por isso é que discutíamos.)
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
VELUT UMBRA
Fumo e cismo. Os castelos do horizonte
Erguem-se, à tarde, e crescem, de mil cores,
E ora espalham no céu vivos ardores,
Ora fumam, vulcões de estranho monte...
Depois, que formas vagas vêm defronte,
Que parecem sonhar loucos amores?
Almas que vão, por entre luz e horrores,
Passando a barca desse aéreo Aqueronte
Apago o meu charuto quando apagas
Teu facho, oh sol... ficamos todos sós...
É nesta solidão que me consumo!
Oh nuvens do Ocidente, oh cousas vagas,
Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
Beleza e altura se me vão em fumo!
Antero de Quental