- O dinheiro não traz a felicidade mas acalma os nervos, explicou ela. Foi uma colega minha quem me ensinou isto. Sobretudo os nervos do rapaz que lhe tomava conta do negócio
Não sei qual é a sua idade mas dá ideia de pensar que são vinte anos menos. Encontro-a na esplanada, às vezes, diante de um galãozito claro, com os vinte anos menos dentro de um vestido demasiado curto, que descobre as pernas magríssimas. Dois ou três anéis enormes fazem os possíveis por tapar os dedos deformados. Nunca vi uma pessoa com tantas veias ao léu, no pescoço, nos braços com enfiadas de pulseiras, nas têmporas até, a baterem, a baterem. Também teve um rapaz que lhe tomava conta do negócio, agora vive de esmolas:
- Por acaso não traz no bolso uma nota de vinte a mais que me empreste?
Dorme num quartito que uma sobrinha lhe empresta, uma rapariga enérgica que trabalha num bar de alterne: é uma vocação de família, essas coisas herdam-se, o sangue fala sempre mais alto. A rapariga enérgica grita
- Pensa que ganho o suficiente para a sustentar a galões?
dado que o rapaz que toma conta da sobrinha exige justificativos para cada cêntimo, visto o pessoal da segurança, quase todos polícias, ser meticuloso nas percentagens e prestar vassalagem mais acima, a um inspector que a Judiciária demitiu por ninharias deste género. O dono da esplanada, a quem a minha amiga faz uns favores ocasionais, pelo modo como se mexe um bocado empenado, interessa-se
- Como vai dona Ema?
derivado a que o osso da anca iniciou uma revolta contra ela, a que o colesterol aderiu. Felizmente o coração, por enquanto, mantém-se neutro e o médico anda em diligências diplomáticas na esperança de evitar que os ventrículos tomem partido
- São impulsivos os ventrículos, previne ele à dona Ema, as aurículas em geral pacíficas, os ventrículos é o que lhes dá na tola
e a dona Ema, é natural, preocupada com a tola dos ventrículos. Quase oitenta anos se calhar, sei lá, o osso da anca arrasta-se ao andar. Mas anda. Pelo menos por enquanto anda. Anda ela e andam os pombos no passeio em torno da esplanada. Sempre os achei parecidos com chefes de secção, sempre achei que, quando chegam, o mundo fica cheio de funcionários públicos. A dona Ema, a olhar para a minha tosta mista: 
- Você o que é que faz como trabalho?
que é uma pergunta sempre difícil para mim. Não vou dizer que escrevo, tenho pudor, não vou dizer que sou médico porque já não faço medicina e os impulsos dos ventrículos escapam-me. Fico a olhar a tosta com ela e parecemos duas pessoas fixadas num quadro de museu. Respondo
- Ando por aí
e a dona Ema a subir da tosta até mim, desconfiada, não vá eu fazer parte do grupo do inspector e encontrar-me na esplanada em trabalho, investigando desvios aos regulamentos de conduta das raparigas do alterne, por vezes dominadas por impulsos autonomistas de País Basco, que umas bofetadas a tempo, graças a Deus, corrigem. As mulheres, largadas à solta, são todas como aquelas de que falava um senhor espanhol: a morte do marido transtornou-a tanto que, de um dia para o outro, o cabelo tornou-se-lhe loiro, e portanto convém andar em cima da fruta. A dona Ema, esperançosa
- Pediram-lhe que se ocupasse de mim?
e eu, não querendo desiludi-la
- Mais ou menos
fazendo-a sonhar com música, penumbra, mesas discretas e clientes sussurrantes, de joelhinho empreendedor, a sonharem com uma hora de ginástica sueca numa pensão a jeito. O problema da dona Ema era a anca
(- Será que aguenta, será que não aguenta?)
que o resto é como andar de bicicleta, não se esquece nunca, e até faz oitos se for preciso. A dona Ema hesitou nesse ponto, a vacilar
- Ainda conseguirei um oito?

e há-de conseguir, dona Ema, se o coração se mantiver neutro é canja.
Tornámos a encontrar-nos no dia seguinte, tornámos a encontrar-nos mais vezes, convidei-a a visitar-me em casa, conversámos disto e daquilo, fomos ganhando amizade, dormimos juntos a verificar os oitos que conseguimos mais ou menos, um bocado tremidos mas conseguimos mais ou menos, a amizade deu lugar à afeição, a afeição deu lugar ao, não direi amor, que oitenta anos sempre são uma barreira, a afeição deu lugar a uma ternura sólida, não cozinha mal, não limpa mal, tem-me o andar arrumado e, acerca de dois meses, mandei-a trazer os tarecos para aqui. Não me sinto aborrecido: tenho companhia à noite e massaja-me os ombros quando chego cansado. Não me trata por Hernâni, trata-me por Nani como a minha madrinha me tratava e uma noite ou outra damos um pulinho ao bar de alterne, onde me apresentou um militar reformado, um pouco a cair da tripeça mas lúcido, que me declarou com entusiasmo
- Tem aí uma pérola
e sem ofensa, até tenho. A idade a gente esquece e também não olho muito para ela. Sento-me no sofá, fecho os olhos, a dona Ema traz-me uma almofada para apoiar a cabeça
- Não estás melhor assim, Nani?
e realmente até estou. Descalço e confortável, com a dona Ema ao lado. De longe em longe um oitozito, basta-me pensar na sobrinha e aí vou eu. Ofereço-lhe uns trocos
(poucos)
para os alfinetes dela, que a dona Ema merece, dedicada, cúmplice. Quando o visitamos o médico o doutor segreda-me
- Um dia destes fica-lhe como um passarinho
mas enquanto fica e não fica vivo em sossego. No caso de ficar o meu cunhado, que trabalha no ramo, já me prometeu um funeral em conta. E no dia seguinte lá estarei na esplanada, certo de que no meio d os pombos algum galãozito claro há-de aparecer.